(Imagem: Divulgação)
Por Rubem Alves
Um dos meus prazeres é passear pela feira. Vou para comprar. Olhos compradores
são olhos caçadores: vão em busca de caça, coisas específicas para o almoço e a
janta. Procuram. O que deve ser comprado está na listinha. Olhos caçadores não
param sobre o que não está escrito nela. Mas não vou só para comprar. Alterno o
olhar caçador com o olhar vagabundo. O olhar vagabundo não procura nada. Ele
vai passeando sobre as coisas. O olhar vagabundo tem prazer nas coisas que não
vão ser compradas e não vão ser comidas. O olhar caçador está a serviço da
boca. Olham para a boca comer. Mas o olhar vagabundo, é ele que come. A gente
fala: comer com os olhos. é verdade. Os olhos vagabundos são aqueles que comem
o que vêem. E sentem prazer. A Adélia diz que Deus a castiga de vez em quando,
tirando-lhe a poesia. Ela explica dizendo que fica sem poesia quando seus
olhos, olhando para uma pedra, vêem uma pedra. Na feira é possível ir com olhos
poéticos e com olhos não poéticos. Os olhos não poéticos vêem as coisas que
serão comidas. Olham para as cebolas e pensam em molhos. Os olhos poéticos
olham para as cebolas e pensam em outras coisas. Como o caso daquela paciente
minha que, numa tarde igual a todas as outras, ao cortar uma cebola viu na
cebola cortada coisas que nunca tinha visto. A cebola cortada lhe apareceu,
repentinamente, como o vitral redondo de catedral. Pediu o meu auxílio. Pensou
que estava ficando louca. Eu a tranqüilizei dizendo que o que ela pensava ser
loucura nada mais era que um surto de poesia. Para confirmar o meu diagnóstico
lembrei-lhe o poema de Pablo Neruda "A Cebola", em que ele fala dela
como "rosa d'água com escamas de cristal". Depois de ler o poema do
Neruda uma cebola nunca será a mesma coisa. Ando assim pela feira poetizando, vendo
nas coisas que estão expostas nas bancas realidades assombrosas,
incompreensíveis, maravilhosas. Pessoas há que, para terem experiências
místicas, fazem longas peregrinações para lugares onde, segundo relatos de
outros, algum anjo ou ser do outro mundo apareceu. Quando quero ter
experiências místicas eu vou à feira. Cebolas, tomates, pimentões, uvas, caquis
e bananas me assombram mais que anjos azuis e espíritos luminosos. Entidades
encantadas. Seres de um outro mundo. Interrompem a mesmice do meu cotidiano.
Pimentões, brilhantes, lisos, vermelhos, amarelos e verdes. Ainda hei de
decorar uma árvore de Natal com pimentões. Nabos brancos, redondos, outros
obscenamente compridos. Lembro-me de uma crônica da querida e inspirada Hilda
Hilst que escandalizou os delicados: ela ia pela feira poetizando eroticamente
sobre nabos e pepinos. Escandalizou porque ela disse o que todo mundo pensa mas
não tem coragem de dizer. Roxas berinjelas, cenouras amarelas, tomates redondos
e vermelhos, morangas gomosas, salsinhas repicadas a tesourinha, cebolinhas,
canudos ocos, bananas compridas e amarelas, caquis redondos e carnudos (sobre
eles o Heládio Brito escreveu um poema tão gostoso quanto eles mesmos), mamões,
úteros grávidos por dentro, laranjas alaranjadas (um gomo de laranja é um assombro,
o suco guardado em milhares de garrafinhas transparentes), cocos duros e
sisudos, pêssegos, perfume de jasmim do imperador, cachos de uvas, delicadas
obras de arte, morangos vermelhos, frutinhas que se comem à beira do abismo...
Minha caminhada me leva dos vegetais às carnes: lingüiças, costelas defumadas,
carne de sol, galinhas, codornizes, bacalhau, peixes de todos os tipos,
camarões, lagostas. Os vegetarianos estremecem. Compreendo, porque na alma eu
também sou vegetariano. Fosse eu rei decretaria que no meu reino nenhum bicho
seria morto para nosso prazer gastronômico. Mas rei não sou. Os bichos já foram
mortos contra a minha vontade. Nada posso fazer para trazê-los de volta à vida.
Assim, dou-lhes minha maior prova de amor: transformo-os em deleite culinário
para que continuem a viver no meu corpo. De alguma maneira vivem em mim todas
as coisas que comi. Sobre isso sabia muito bem o genial pintor Giuseppe
Arcimboldo (1527-1593), que pintava os rostos das pessoas com os legumes,
frutas e animais que se encontram nas bancas da feira. (Dê-se o prazer de ver
as telas de Arcimboldo. Nas livrarias, coleção Taschen, mais ou menos quinze
reais).
Meus pensamentos começam a teologar. Penso que Deus deve ter sido um artista
brincalhão para inventar coisas tão incríveis para se comer. Penso mais: que
ele foi gracioso. Deu-nos as coisas incompletas, cruas. Deixou-nos o prazer de
inventar a culinária.
Comer é uma felicidade, se se tem fome. Todo mundo sabe disto. Até os
ignorantes nenezinhos. Mas poucos são os que se dão conta de que felicidade
maior que comer é cozinhar. Faz uns anos comecei a convidar alguns amigos para
cozinharmos juntos, uma vez por semana. Eles chegavam lá pelas seis horas
(acontecia na casa antiga onde hoje está o restaurante Dali). Cada noite um era
o mestre cuca, escolhia o prato e dava as ordens. Os outros obedeciam
alegremente. E aí começávamos a fazer as coisas comuns preliminares a cozinhar
e comer: lavar, descascar, cortar — enquanto íamos ouvindo música, conversando,
rindo, beliscando e bebericando. A comida ficava pronta lá pelas 11 da noite.
Ninguém tinha pressa. Não é por acaso que a palavra comer tenha sentido duplo.
O prazer de comer, mesmo, não é muito demorado. Pode até ser muito rápido, como
no McDonald's. O que é demorado são os prazeres preliminares, arrastados —
quanto mais demora maior é a fome, maior a alegria no gozo final. Bom seria se
cozinha e sala de comer fossem integradas — os arquitetos que cuidem disso —
para que os que vão comer pudessem participar também dos prazeres do cozinhar.
Sábios são os japoneses que descobriram um jeito de pôr a cozinha em cima da
mesa onde se come, de modo que cozinhar e comer ficam sendo uma mesma coisa.
Pois é precisamente isto que é o sukiyaki, que fica mais gostoso se se usa
kimono de samurai.
Quem pensa que a comida só faz matar a fome está redondamente enganado. Comer é
muito perigoso. Porque quem cozinha é parente próximo das bruxas e dos magos.
Cozinhar é feitiçaria, alquimia. E comer é ser enfeitiçado. Sabia disso
Babette, artista que conhecia os segredos de produzir alegria pela comida. Ela
sabia que, depois de comer, as pessoas não permanecem as mesmas. Coisas mágicas
acontecem. E desconfiavam disso os endurecidos moradores daquela aldeola, que
tinham medo de comer do banquete que Babette lhes preparara. Achavam que ela
era uma bruxa e que o banquete era um ritual de feitiçaria. No que eles estavam
certos. Que era feitiçaria, era mesmo. Só que não do tipo que eles imaginavam.
Achavam que Babette iria por suas almas a perder. Não iriam para o céu. De
fato, a feitiçaria aconteceu: sopa de tartaruga, cailles au sarcophage, vinhos
maravilhosos, o prazer amaciando os sentimentos e pensamentos, as durezas e
rugas do corpo sendo alisadas pelo paladar, as máscaras caindo, os rostos endurecidos
ficando bonitos pelo riso, in vino veritas... Está tudo no filme A Festa de
Babette. Terminado o banquete, já na rua, eles se dão as mãos numa grande roda
e cantam como crianças... Perceberam, de repente, que o céu não se encontra
depois que se morre. Ele acontece em raros momentos de magia e encantamento,
quando a máscara-armadura que cobre o nosso rosto cai e nos tornamos crianças
de novo. Bom seria se a magia da Festa de Babette pudesse ser repetida...
O texto acima foi publicado no jornal "Correio Popular",
Campinas(SP), com o qual o educador e escritor colabora.
Rubem Alves: sua vida e sua obra estão em "Biografia / Fonte: Site Releituras.